sábado, 23 de agosto de 2008

A sopa

"Reações", por Sabrina Sanfelice

Capítulo IV

A sopa

Já se passavam das sete da noite. A sopa de ervilha borbulhava na panela enquanto Ulisses terminava de ler o jornal. Em uma das crônicas do dia o jornalista apontava um incidente em uma cafeteria da cidade, alguma coisa sobre um roubo. Ele irremediavelmente ri. Ulisses quase sempre ri por um canto só da boca quando está sozinho. Fecha o jornal e vai ver a sopa, apaga o fogo, prepara a mesa e serve a sopa no prato fundo que recebeu de herança se sua tia-avó.

Senta calmamente no mesmo canto da mesa, de costas para a porta da cozinha. A sopa está quente e Ulisses revira e mistura o caldo para suportá-lo na boca. O cheiro de especiarias o faz lembrar o dia em que conheceu Cláudia. Na verdade, o pico olfativo o faz sentir repulsa e adoração ao mesmo tempo. É tão parecido com o sentimento que cultiva por ela, algo como “o perfeito que enjoa”, como cheiro de jasmim, especiarias e o perfume caro da secretária do dentista.

Cláudia estava sentada numa mesa perto da calçada tomando chá indiano. A bolsa pendurada na cadeira mostrava algumas folhas soltas com partituras musicais. A blusa cor de lavanda, rendada nas pontas, meias-finas e sapatos fechados. Ulisses queria mesmo era ver seus dedos, mas ela estava de costas, os cabelos parcialmente presos, castanhos. Ele abanou com as mãos tentando espantar abelhas invisíveis. Levantou, fez-se de irritado e o garçom, gentilmente, veio ao seu encontro.

Outra mesa Senhor?
Ulisses pensava que ele teria percebido sua intenção. Então, tentou intimidá-lo com um monte de argumentos como sua alergia por picadas de abelha e seu único momento de descanso merecido. Acabou por sentar-se numa mesa onde via seu perfil. Rosto suave, pálido, nariz fino e, finalmente, as mãos. Ela segurava a xícara de porcelana e os dedos longos adornavam a superfície do pires sobre a mesa. Quando descansava a xícara, ficava passando a ponta dos dedos na borda como se quisesse produzir um som daqueles feitos por taças de cristal puro.

Estava longe, pensativa. De vez em quando, os dedos sobre o pires imitavam posições nas teclas de um piano e ao mesmo tempo os pés, embaixo da mesa, pisavam em pedais invisíveis. Ela era como um livro de contos de fada, daqueles que quando alguém nos lê quando crianças, ficamos imaginando o que estará fazendo agora o personagem principal.

Ela olhou para o lado. Olhos cor de mel, numa expressão quase etérea. Fez sinal para o garçom e mostrou a xícara. Voltou os olhos para a mesa e sorriu. Ulisses retribuiu e perguntou as horas. Cláudia mostrou a cadeira que estava ao lado e sorriu de novo. Em passos lentos, quase atemporais, infinitos... ele andou até ela. Seus olhos achavam os dela e nadavam entre seus longos cílios postiços. O cheiro de canela ficava mais forte a cada segundo.

Ulisses fecha os olhos para lembrar melhor. Respira fundo e não sente nada. Abre os olhos e vê o prato de sopa na mesa. Vem devagar, trazendo a colher até a boca e sente: está fria. Muito fria, assim como sua memória através dos anos. A convivência é como a sopa que saiu da panela. Quanto mais tempo esperamos alienados, mais rápido esfriamos.