sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Verônica

Ponto de equilíbrio, por Sabrina Sanfelice

Com o corpo ainda quente em seu colo, Heloíse começou a recordar de Anna, a amante mais marcante de seu pai. A cena, vista pelo vão da porta do quarto, parecia uma dança dos corpos. Um homem com volúpia de paixão entrelaçava o corpo farto de uma garota que, apesar da pouca idade, esforçava-se para mostrar seus encantos através dos atos.

(...)

Os olhos dela secaram. Já não se notava mais o brilho das pupilas que, radiantes, abriam com a chegada de um sorriso. Debaixo das olheiras de cansaço, estava uma expressão medíocre de definhamento. A diferença entre um ser humano morto e um ser humano limitado de seus maiores dons é somente a alteração das pupilas. Quando morremos biologicamente, somos dominados pela escuridão visual. Quando morremos por não sabermos fazer nossas escolhas e sucumbimos ao egoísmo alheio, somos dominados pela clareza do medo.

(...)

(Trecho do conto "Verônica", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice, Editora Patuá)

domingo, 12 de outubro de 2008

Aos sete

O balanço do tempo, por Sabrina Sanfelice

Capítulo VII
Aos sete
Acordei com um incômodo nas costas e gosto de bala na boca. A cena que completava o ambiente era drástica: pequeninos pés vestidos com meias brancas e sapatos de verniz preto dividiam o horizonte com a tábua de um balanço de madeira, ainda úmido pelo orvalho da manhã. Eu tinha apenas sete anos quando me perdi para sempre do mundo real.
Entre a terra e as folhas secas do meu lugar preferido dos fins de tarde, adormeci sozinho. Nem os gritos de minha ama de leite conseguiram me tirar do entusiasmo de estar sem banho, comendo doces e escondido nos jardins de minha vizinha há horas. Era lá que eu fugia da realidade e criava um universo possível o qual sinto saudade até hoje.
O gosto amargo da nostalgia só vem tempos depois que a lembrança aparece e, em seu lugar, nos deparamos com a impossibilidade da volta. Naquele exato dia em que minha mãe saiu para colocar uma carta no correio, eu fui atropelado por um sono profundo, quase mortal e um tanto estranho se analisarmos a fundo a história verdadeira, contada por meus ancestrais ainda vivos. Dizem que memória de criança é algo fantasioso, mas nesse caso a minha é apenas um fragmento de todo o fato comprovado pelas mentes mais sãs de minha família.
Contam que me procuraram por semanas e só me encontraram voltando com os sapatinhos na mão exatamente um mês depois de darem conta de meu sumiço. Carolina, minha irmã mais velha dizia ter visto os ciganos me levarem como filho postiço. Juca, meu amigo inseparável dizia que eu tinha ido para a constelação Ursa Maior, a qual fazíamos contato desde os quatro anos. Dona Ermelinda jurava que os homens do circo levavam crianças todas as vezes que passavam por alguma cidade nova.
Meu pai, sensato homem de bem, sabia que não poderia haver explicação plausível em nenhuma dessas alternativas, já que eu tinha voltado por vontade própria para casa. O caseiro meio-índio e grande amigo, Francisco, com pena das surras que eu levei até que algo de real saísse de minha boca, afirmava que nas matas ali perto havia um cipó nativo que fazia qualquer homem perder a noção de espaço e memória quando pisoteado sem querer.
Mas meu pai não queria saber de lendas. Ele queria era descontar em mim toda a tristeza da morte de minha mãe. Por algum motivo ele me culpava pelo acontecido, ou melhor, tinha certeza de que meu sumiço estava diretamente ligado a morte dela. Não existem coincidências Ulisses! Ela saiu para ir ao Correio ao mesmo tempo em que você saiu para brincar e, no outro dia eu tenho uma mulher morta e um filho desaparecido. Tenho certeza de que você não quer me contar alguma coisa!
Eu sempre soube do caso de minha mãe com o homem de olhos azuis e até mesmo sabia que a carta era para ele, mas não poderia imaginar o que teria acontecido naquele dia para que ela, mesmo com toda a agonia guardada no peito, cometesse suicídio. Lembro de ter saído para brincar no balanço do jardim e adormecido sem querer. Não conseguia entender nem ao menos que, nessa lacuna do tempo, minha mãe havia morrido, meus pés crescido e um mês decorrido sem que minha mente tivesse consciência disso tudo.
Culpado! Culpado! Culpado! Essas eram as vozes que eu ouvia quando olhava todos os membros de minha família enquanto o carro que me levaria ao internato saia da fazenda. Não me deram nada para que eu lembrasse dela no tempo em que estivesse por lá. Não me visitaram sequer uma vez até que os estudos terminassem e nem ao menos as férias ou Natal eu pude passar com alguém do meu próprio sangue.
Nada disso importava para um menino de sete anos mais do que carregar a culpa da morte de sua mãe. Nada, até o dia em que uma carta envelhecida, quase apagada pelo tempo caiu em minhas mãos exatamente vinte anos após a morte de Dona Clara dos Anjos. Com os dedos trêmulos da ressaca da noite anterior, abri com lágrimas nos olhos a resposta que eu tanto busquei para dar ao meu pai.
Endereçada a minha mãe, com letra de quem tem na escrita sua fonte de vida, o conteúdo começava com a doce saudação “Bom dia, meu amor”.
As coisas por aqui estão exatamente como você deixou. As flores crescem, assim como a promessa de que, um dia, estaremos juntos. A única coisa que me incomoda é que não sei qual sua cor preferida para pintar as paredes de nossa sala de estudos. A sala na qual poderei terminar o seu sonho de me trazer chá na ponta dos pés para não atrapalhar o andamento do livro.
Clara. Gosto de escrever seu nome com todas as letras para que elas ressoem em minha mente como um fragmento do meu amor. Amor que carrego há anos como um bem precioso, ainda adormecido, mas no qual acredito com todo meu coração. Sentimento frutífero que pode ser descrito pela memória dos dias felizes, embora fracionados, que passamos juntos.
Ainda sou capaz de lembrar da areia branca cobrindo seus pés quando construímos juntos o maior bem de nossas vidas: Ulisses. Tenho certeza de que um dia você me deixará contar a ele essa história que o permite ter, diferente de todos seus irmãos, olhos da cor do mar.
Meu amor, ainda que não tenha o hábito de promessas, abro aqui um parêntese para prometer a você que o conteúdo de sua carta será totalmente ignorado. Não posso e nem quero conceber dentro de mim que você tenha permitido tal crueldade. Nunca imaginei que ao pedir insistentemente para que você contasse a verdade, pudesse selar seu destino com mãos de ferro.
Dessa vez, diferente de todas, viajo essa noite para te buscar.


Mas Ulisses, ainda não entendi porque sua mãe se matou, se é que ela realmente se matou, sem sequer ler a resposta.
Se você como terapeuta não concluiu a história, a única coisa que posso te dizer é o que suspeitei ao olhar nos olhos de minha mãe, ao me despedir na manhã que antecedeu sua morte. Dona Clara dos Anjos não sabia mentir.