domingo, 14 de dezembro de 2008

O sono do ébrio

Saudade do futuro, por Sabrina Sanfelice (2005)
Capitulo X
O sono do ébrio
Embriagado. Inebriado pela ausência da razão. Era assim que ele estava se sentindo ao folhear a segunda página de um livro em branco. As lágrimas escorriam pela face do sujeito moribundo ao contar, com emoção e perturbação, sua experiência com aquele que seria não só o objeto de estudo da vida de Ulisses, mas atualmente e para todo o sempre, sua razão de viver.
Antonio era um homem de cinqüenta e poucos anos aposentado por invalidez. Alguns diziam que tinha mal de Alzheimer, mas a enfermeira da Casa de Repouso jurava que era loucura pura. Dizia pausadamente cochichando: “no começo eu até pensei que era tudo fingimento, mas depois de anos eu tive a certeza de que ele não bate bem dos pinos”.
Ulisses tinha percorrido quilômetros até chegar naquele local no cafundó do Judas para conhecer a primeira pista verdadeira das muitas pelas quais seguiu nos últimos tempos e que poderia levá-lo a ter contato real com seu “livro”. Ele quase perdeu a vontade quando teve que dormir em redes, comer sentado no chão de barro, tomar água suja de poço numa caneca de alumínio usada por mais de cinco pessoas no mesmo dia.
Mas, a força que movia sua busca já não era mais a mesma que a conquistou no começo. De curiosidade e mistério, há tempos que aquilo tudo já tinha passado pelo âmbito do irracional, da fuga da única realidade que ele poderia usufruir, de tudo que ele tinha medo de deixar ou não tinha coragem suficiente para mudar para, finalmente, se tornar um assunto ligado ao ego. Quando se perde tudo, ainda existe um elemento fundamental para completar a total perda da essência e da dignidade, chamado orgulho.
“Não existe busca mais medíocre do que aquela que é manipulada pelo orgulho. O orgulho em vencer uma guerra faz com que sejamos indignos da vitória. Competir é para os fracos. Os fortes estão interessados em complementar, em acrescentar e, enquanto os competidores sangram em busca de um troféu invisível, o sábio está abaixado no ringue da vida, recolhendo todos os pertences e o sulco que de vida de todos aqueles meros mortais. A sabedoria não morre. Ela perambula pelo universo através de portas que só podem ser acessadas por caminhos não convencionais”.
Isso está escrito no livro, Antonio? Por que você ficou com essa parte em sua mente? Por favor, repita os detalhes desta composição para que eu consiga captar tudo aquilo que preciso para completar minha busca. Eu preciso encontrar esse livro e absorver, assim como você, conhecimentos que ainda não domino, mas que atormentam minha mente pedindo passagem.
Você ainda está bêbado, meu caro amigo. Não se pode beber da fonte do conhecimento quando manipulamos nossa consciência com entorpecentes.
Eu? Bêbado? Você está louco? Eu não coloquei uma gota sequer de álcool na boca. Estou tão sóbrio como uma criança de quatro anos.
Primeiro erro. Quem disse que uma criança de quatro anos tem a opção de estar sóbria? Elas não precisam entorpecer a mente porque a realidade que enxergam está longe de ser interpretada. Elas consomem e abusam de um elemento que perdemos e que, sem ele, não conseguimos chegar a lugar nenhum: a inocência. A inocência e a humildade andam de mãos dadas.
Bom, o que eu fiz foi somente usar uma metáfora. Usei a frase para tentar te dizer que estou sóbrio, só isso.
Segundo erro. Sobriedade e embriaguez não são antônimos. A moderação da sobriedade me enoja. Ela é tão nojenta quanto à moral que a criou. A embriaguez pode ser um estado de entorpecimento temporário, mas ainda sim é mais digna do que a sobriedade. Portanto, eu ainda achava você melhor bêbado. Espero que não tente me convencer de sua sobriedade e só volte aqui quando souber o que te trouxe até mim. Antes disso, serei para você como um livro com as páginas em branco:
“A frustração de ver as folhas em branco não será maior do que o desespero de ter que preenchê-las com suas próprias mãos, criando assim um livro no qual você é autor e personagem. Um livro com o qual temos que lidar com a culpa e a responsabilidade de ser quem somos dos dois lados, de todos os lados, de dentro e de fora, do racional e do irracional. Uma história na qual não existem ventríloquos, leis, moral ou imposição. Estamos escrevendo as páginas de nossas vidas, na qual a tinta que borra o papel é vermelha escarlate... e o ponto final é nosso último suspiro”.
Os olhos de Ulisses se encheram de lágrima porque, talvez ali, com aquele moribundo, num momento tão simples, com o cheiro fétido da cama de um lugar de ninguém, ele tenha começado a entender o que estava buscando.
Abra seus olhos Ulisses. Abra seus olhos, disse Antonio.
Estão abertos, caro amigo, mas minhas pupilas ainda não se acostumaram com a luz.