terça-feira, 27 de agosto de 2013

Um caso de inocência

Yin Yang, por Sabrina Sanfelice, Paraty, 2008.

Um caso de inocência

Sábado à noite era terrível. Ele só dava conta de que não tinha nada para fazer quando acordava, lá pelas duas da madrugada, insone. Passava espiando pelas frestas dos quartos e via os dois filhos, numa paz gloriosa do sono inocente. A mulher, que tinha passado por rituais sagrados do final de semana, também dormia, com uma das pernas estirada para cima.

Ele pensava em ver filmes começados na TV a cabo, em dar uma passada de olho em sites que a essa hora da noite também já eram ingênuos ou abrir alguma bebida. Mas beber sozinho é tão sem propósito. Então, ele decidia voltar para a cama e tentar pensar em qualquer coisa até dormir. Normalmente, esses pensamentos eram memórias. Lembrava sempre de um amigo de infância que mudou da vizinhança logo após o pai ser internado como alcoólatra. Eles costumavam dividir refrigerantes destinados ao almoço de domingo, escondidos na copa de uma alta jabuticabeira.

Nesse domingo, bem cedinho, ouviu vozes estranhas vindas de fora da casa. Levantou curioso, afinal, onde morava isso era raro. Não tinha vizinhos, as casas ao lado ambas estavam à venda. Olhou pelo vitrô da sala de estar e viu uma família que saía da residência à direita da sua e cumprimentava feliz um homem de terno. Matou a charada na hora: uma das casas vizinhas fora vendida.

Na hora ele pensou mil coisas, como o tipo de pessoas que estariam ali, ao seu lado, durante muito tempo ou se eles reformariam a casa e fariam barulhos indesejáveis. Duas semanas depois, lá estavam seus novos companheiros de quarteirão. Dois adultos, duas crianças, mais uma fotocópia de sua própria realidade. Será que ele também era insone?

Conheceram-se em seguida, as mulheres receptivas e amigáveis já tinham fofocas e segredos enquanto olhavam os filhos brincarem sem que percebessem mutuamente que, na verdade, examinavam, sem pudor, o discurso, as roupas, os corpos, o marido e os filhos alheios. Eles, mais que naturalmente, falaram do imóvel, da rua, do guarda noturno e, no máximo, sobre futebol. Afinal, esse é o limite de intimidade que se tem com outro homem estranho. O resto simplesmente não se fala.

A rotina fez com que algumas relações fossem estabelecidas. As escolas dos filhos, os cabeleireiros das mulheres e, entre eles, uma cerveja de vez em quando. Quando o time em comum jogava, assistiam na casa de um ou de outro enquanto as crianças brincavam no quintal. Os comentários finais do jogo e o horário de janta dos filhos encerravam a relação amistosa desses bons vizinhos aos finais de semana.

Engraçado ter começado a dormir melhor depois da chegada dos novos moradores ao lado. Seria insegurança a razão de sua insônia ou apenas coincidência? Mas foi só falar do diabo... O relógio marcava duas em ponto. Ele foi para sua angústia de pensar nas possibilidades do que fazer sem o sono e estava a ponto de desistir quando viu uma luz de fora acender. Era o vizinho, que chegava com o carro e abria o portão eletrônico.

Colocou um shorts apressado e foi lá fora como quem vai averiguar um barulho estranho. Deu de cara com o cidadão ligando o alarme do carro. Acenou com um sorriso como quem indica alívio ao não ver um rosto estranho. Da outra casa, foi correspondido por um sorriso de surpresa ao ver uma cara conhecida ali, aquela hora.

O saco plástico da mão do vizinho carregava latas de cerveja gelada. O plástico suava com o contato do alumínio e ele sentiu vontade de perguntar qualquer coisa, mas foi barrado pelo respeito à privacidade alheia. Nem precisou. Entre homens não existe essa frescura de deixar no ar. O vizinho logo foi relatando que voltava da casa de um amigo e que trazia cervejas que sobraram do churrasco. Retirou uma da sacola, abriu e estendeu a mão como quem diz: não ouse recusar!

Mas recusar era tudo que ele não faria. E sentaram ali mesmo, na calçada em frente às casas, para beber e conversar. Falavam de tudo, mas o que mais faziam era contar sobre o passado. O álcool é um grande moldador da memória humana. Chegavam a rir alto quando esqueciam que as mulheres dormiam e que não queriam ser vistos por olhos curiosos.

Na vigésima noite de insônia com companhia, ele chegou a pensar que tinha encontrado um amigo. As histórias mesclavam mitos masculinos com a virilidade precoce de dois adultos que, naquele momento, voltavam a ser meninos. Que pena que você só apareceu agora! Nós seríamos uma dupla e tanto se estivéssemos solteiros! Você já viu a gordinha da rua de baixo pegar o lixo da sarjeta? Ela não usa sutiã e quando abaixa para recolher as folhas...

E as cervejas suavam com o calor das conversas. Os ânimos se exaltavam quando falavam juntos a mesma frase e riam, compulsivamente, com o efeito deslumbrante da bebida. Eram como unha e carne. A intimidade parecia ter nascido com eles até aquela noite, quando, acidentalmente, o vizinho bateu em sua coxa direita com a lata de cerveja gelada e depois, cambaleante, apoiou-se em seu joelho para levantar da sarjeta.

Ele descobriu que não conhecia intimidade até aquela fração de segundos. Ficou pasmo, parado, não conseguia se levantar para entrar e o amigo, zeloso, fez menção de que o ajudaria a se levantar se não tivesse condições de fazê-lo sozinho. A possibilidade de um novo contato físico o fez dar um impulso e entrar rápido com a desculpa de que a mulher poderia ter acordado com o barulho.


Nessa noite ele dormiu feito um anjo, assim como em todas as outras noites de sua vida. A memória, sua mais íntima amiga, era a única com a qual ele podia beber e saborear todos os prazeres que só lhe eram possíveis com os olhos fechados pelo sono inocente.

Sabrina Sanfelice, 25/08/13, num caso de insônia induzida.

domingo, 18 de agosto de 2013

A fuga (Ella)

Microexperiência da morte, autorretrato, 01-01-10

(...)

Cheguei e não havia nada de errado. Não tinha um motivo para voltar. Por enquanto eu não tinha me arrependido de nada. Estava até gostando. O gosto da surpresa é muito melhor do que o da expectativa. Pensei que se, por algum momento, eu parasse de suspeitar do arrependimento, poderia me surpreender. E fiquei mais leve. Mas foi só por cinco minutos. O golpe fatal veio tão sutilmente que eu nem percebi.

Me gelou a espinha. Dei um salto para trás e saí correndo. Ela estava ali, na minha frente, rindo feito uma criança sapeca. E acenava, de longe, me vendo correr desorientado, como se quisesse me dizer: não se preocupe, sou assim mesmo, espontânea.

(...)


(Trecho do conto "Ella", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice, Editora Patuá)