domingo, 29 de setembro de 2013

O nome da cor (Amber)

Da cor da saudade, Sabrina Sanfelice, 2013.

(...)

Para ele, ela escolheu um tom especial, o mesmo que ela observava no fundo da xícara de café enquanto conversava, tímida, e ao levantar os olhos, encontrava outros tons, alegres e convidativos, que transformavam a borra do líquido transparente no recipiente branco, num filtro de sépia que permanecia apenas por uma pequena fração de segundos, enquanto seus olhos se acostumavam depois de terem ficado um bom tempo fixados no fundo da xícara. Quase aquelas brincadeiras óticas que fazemos para conseguir ver uma imagem projetada na parede branca depois de olharmos fixamente para ela por alguns segundos. Mas, nesse caso, essa brincadeira passou a ser algo aprendido e feito constantemente, criando para aquela fração de vida, uma eterna memória em tons de sépia.

(Trecho do conto "Amber", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice, Editora Patuá)


Sabrina ("com suas tranças feitas de lírios, compondo a trama de seus cabelos cor de âmbar", parte do poema de John Milton, de 1634).


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Dislexia diseidética (Maria)

Eu te amo em todas as línguas, fotomontagem, Sabrina Sanfelice.



(...)

Isso é como subestimar a essência da nossa capacidade de ir além da linguagem oral. Ainda somos carne, alma e coração. E, como dá trabalho e pode ser fatal atingir os dois últimos, podemos escolher a primeira ao invés da complexa linguagem. Eis que, então, surge um mal-entendido, um gesto estranho, uma palavra mal colocada, um suspiro de ódio com cara de rancor, uma lágrima disfarçada, um deixa pra lá, é melhor não dizer. Isso mesmo! Se é melhor não dizer, não diga. A não ser que você queira ser o culpado. Em todos os sentidos. Mas o pior deles é que você vai ser culpado em acabar com a graça da história. E quando a história acaba, acabou.

Mistério é mistério. Se for decifrado, perde a graça. E quer coisa mais sem graça do que deitar na cama com todas as coisas resolvidas? A força do sexo está no quanto se desconhece. É o mapa do tesouro, é o pote de ouro no fim do arco-íris, é a galinha dos ovos de ouro do gigante do pé de feijão. Porque, de certa forma, tudo flui para um descobrimento pelos meios mais incisivos e perspicazes. E pode rolar de tudo, de cócegas a chantagem, posições e limitações. Você pode se vingar, pode pedir perdão da forma mais doce, pode ir das lágrimas ao riso, da raiva ao amor.

E pular essa parte é quase como marcar a data de uma festa surpresa com o próprio aniversariante. E foi exatamente o que eu fiz. Quis tentar decifrar o enigma da esfinge. Decifra-me ou devoro-te. (...)

(Trecho do conto "Maria", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice))

domingo, 15 de setembro de 2013

Mal secreto (Margarida)

Botões recém-nascidos, por Sabrina Sanfelice, setembro 2008

(...)
Por mais difícil que seja acreditar, vou contar-lhes uma verdade lacrada: as pessoas ainda querem amar e sofrer, seja lá com quem for. Parece quase uma obrigação: comer o doce, tomar o féu, comer o doce, tomar o féu. Uma coisa meio bem-me-quer, malmequer proposital. E no mês das flores, isso piora. Haja petálas! Haja coração! E eu, bem, eu tô cansada dessa guerrinha pervertida.

(...)

O saxofone dobrou-se para a entrada do vocal. Era uma explosão de cores e pétalas que saiam da voz do cantor que dizia, com todas as letras:

“Mas quando você vai embora,

Movo meu rosto no espelho,
Minha alma chora.
(...)

Comovo, não salvo, não mudo

Meu sujo olho vermelho,
Não fico calado, não fico parado, não fico quieto,
Corro, choro, converso,
E tudo mais jogo num verso
Intitulado
Mal secreto.”


(...)

(Trecho do conto "Margarida", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice))

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sincero presente (Fulana)

Eu evolo, tu evolas, nós evolamos. Sabrina by Gisele. 


Toda história mentirosa começa com “era uma vez”. A minha não começa assim quando passo os parágrafos pela mente. Mas é mentirosa também. Todo mundo que quer vender alguma coisa, mente. E o que eu pretendo vender hoje é a credibilidade. Até mesmo para dizer a verdade, é preciso mentir. E, de qualquer forma, vou contar mesmo que não acreditem.

Era madrugada quando me ligaram. A voz do outro lado da linha dizia: sou eu, você pode falar? Eu disse, ainda com sono: eu quem? O que está acontecendo? A pessoa, num tom de ironia, riu alto como se eu tivesse dito alguma blasfêmia: como assim você não sabe com quem fala? É preciso ser muito insensível para esquecer a voz de quem dizemos amar. Mas eu realmente não sabia com quem falava e pedi, gentilmente, uma identificação.

Do outro lado, um suspiro profundo suspendeu no ar por alguns segundos a expressão dura: você quer saber quem sou?

(...)

(Trecho do conto "Fulana", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice, Editora Patuá)

domingo, 1 de setembro de 2013

A morte do homem (Luci)

Beleza sagrada, por Sabrina Sanfelice, julho de 2013

(...)

Essa era exatamente eu. Uma pessoa que, por fora, opta pelo básico e pelo discernimento, a completude de palavras bem colocadas e, por dentro, tem um fumacê tão grande que é impossível ver alguma coisa, senão um emaranhado de intenções mal resolvidas. Eu era, até o atual momento, uma catástrofe genérica, a pior espécie de alguma coisa, porque eu não era nem o ovo, nem a galinha. 

(...)

Todo esse falatório me silenciou por dentro. Não consigo mais me ouvir de tanto que eu falo. E agora, a única pessoa que realmente me ouvia morreu. Como é que eu vou saber o que quero, o que realmente se esconde de mim se eu não tenho mais quem interprete tudo isso? Estou aniquilada, fadada ao fracasso, condenada a viver eternamente com o ressoar do eco de minha voz naquele discurso hipócrita de Maomé na montanha. Isso não serve para mim. Pode até servir para muitas pessoas, pode levar luz ao túnel dos desesperados, mas e o meu desespero? Deus me abandonou e ainda por cima está me punindo porque deve achar que eu tentei usar de seu poder como algo atribuído.

(...)

(Trecho do conto "Luci", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice, Editora Patuá)