segunda-feira, 31 de março de 2014

Mais um cigarro, meu amor

O último cigarro, Sabrina Sanfelice, 2008.


Domingo. Vejo um filme na TV. Aqueles que assistimos enquanto terminamos de comer alguma coisa, esperamos o sono chegar ou qualquer que seja o motivo, sem motivo. E esbarrei numa cena. Um dos personagens disse, em tom de brincadeira para outro, que estava acompanhando uma mulher apenas para acender-lhe o cigarro quando ela precisasse.

Coloquei o copo na mesinha e fiquei olhando o cinzeiro vazio que estava em minha frente. Eu não fumo há séculos. Cigarro faz mal. Mas no cinema o cigarro ainda é um luxo atraente. Nos faz pensar no pós-sexo, no glamour das musas, no “Boa noite e boa sorte”. Toda gente bem resolvida, fuma. No final, a satisfação é selada por um cigarro.

Acho que é bem isso mesmo. As pessoas estão juntas para acender a chama umas das outras. Desde que ambas fumem, claro. Senão, seria expectativa demais querer que alguém acenda seu cigarro quando não carrega um isqueiro. Ou seria fantasia demais esperar que alguém acenda sua chama se você não fuma.

Entrei na padaria. Nunca é tarde. Todos esperam a segunda-feira para começar alguma coisa. 

domingo, 16 de março de 2014

Metrópole

Encontro inesperado, Cemitério do Araçá, Sabrina Sanfelice, 2013.

Desencontro
Desencanto
Parada, no meio-fio
Quero ir
Qualquer esquina
Uma eira,
Planície, montanha
O boteco sujo
O banheiro ao lado
Peço com a mão
Num gesto tímido
Preciso entrar!
Perdi a linha
As estribeiras
O motorista, rindo
Me acena
Como quem diz
Vai passar!
Do outro lado
O estranho chama
E fala agoniado
Foi engano!
E entende mal
Fica puto, o coitado
Eu imploro
Fala comigo!
Não desligo
Repito, apressada
Com quem você quer falar?
E sento,
Na beira
Do eu-mudo
Do colapso
Em pé cansa
Não sinto mais
A sola dos meus passos
E lerda, pairo no ar
Com um pensamento irado
De morte,
Ora de sorte
Punhos cerrados
Pela mínima possibilidade
De te achar
Agora ando
Empurrada
Pela rotina estranha
De qualquer ser humano
Que do amor
Só sobrevive
Meu olhar é vago
Triste, de gente coitada
Esquecida
Até a florista tenta
Quando passo
Me encantar 
Me oferece odores
Falsos, de margaridas
Que só me lembram
Ainda mais
Cravos, todos
Enfiados no músculo
Da minha alma traída
A contragosto
Mudo a rota, dobro a esquina
Subo a rua à direita
Da sua, sempre sua
Aquela rua,
Tortuosa
Que não cabe
Não mais
No curvilíneo
Corpo, afoito
Meu, antes seu
O mapa que me deram
Desatualizado
De uma cidadezinha 
Minúscula
Onde todos se conhecem
E sabem
Não há prédios
E enfeites
Que tirem a atenção
A gentileza
Dos encontros da vida
Não há paradas vazias
Onde o silêncio
Nunca encontra palavras
Para dizer, mesmo baixo
E, por vezes, necessário
Oi, tchau.

domingo, 9 de março de 2014

A copla do agônico

"Luna caida", por Sabrina Sanfelice, Recoleta, Buenos Aires, 2009.


Tem um monte de dor
Que vaga sóbria
Cobre o ser de luz
Para que, sozinho, chore

E cada segundo do pranto
Faz do sofrimento um tudo
Um pouco de amargo
E muito de santo

O gosto que desce as amígdalas
Alimenta a alma
Pouco a pouco
Deixo-o intrínseco

Na ânsia, quanto mais dói
Mais clama, mais chama
Mais rima a trama
Do poeta triste

E ele vê, claramente
Que de genuíno o peso da vida
É como chumbo
Leve como pena

A pena do moribundo
Daquele que chora
Enquanto as palavras saem
Soluçantes, pingo a pingo do tinteiro

O papel é aquele que se entrega
Em branco, sem vida
Grita aflito pelas horas
Em que cada sílaba o corrói

E a dor que antes sóbria
Agora bebe tudo
Afoga em mágoa o bobo
Embebeda de glamour o escrever

E o homem, o que precisa delas
Uma a uma
Todas, no feminino
Dor e palavras a seu bel prazer

terça-feira, 4 de março de 2014

Fantasia

Mais de mil palhaços, Sabrina Sanfelice, 2008

O que quer o corpo
Veste-se de chamas
E em alto e bom tom
Grita a folia:
É hora!

O outro, recalcado
Com a alma presa
A ela, à janela, à tela
Chora, ri e exclama:
Palhaço!

O pobre descalço
Cata, amassa, ensaca
O nó na garganta
No monte de lata, canta:
Passa!

E o poeta
Não sabe o dia
Nem a hora do dizer
Em sua fantasia, apenas assina
Arlequim.