quinta-feira, 24 de julho de 2014

"...se tens já o silêncio, o que é que tu esperas" (Vera)

O inesquecível, Sabrina Sanfelice, Buenos Aires, 2009

Quando passou pela porta, pensei: está morta. Em lágrimas, falava como as cores eram acinzentadas e como tinha perdido a visão. Era justamente o ponto da neutralidade que assustava. Era turva a pupila, um aleitamento que dava dó. E como era bonita, pensava baixinho ouvindo seus gemidinhos miúdos, tamanha era sua sensibilidade aos sons, único recurso que tentava completar o sentido perdido. Dizia o tempo todo: já estou acostumada, já estou acostumada. Referia-se, por certo, ao sofrimento de uma vida toda. Miseravelmente bonita. E eu fui ficando ruborizado, assim, sem o menor pudor, porque sabia que seria impossível que ela sentisse o tom de vermelho sangue que meu corpo lançava, com uma vontade cada vez maior de engolir toda aquela angústia deslumbrante. E mais do que isso, ela ficava mais atraente cada vez que, invertidamente, ouvia pormenores de minha pobreza de espírito, minha pequenez e, numa sensibilidade absurda, admirava-me como um Deus. Mas só podia estar morta. Estava o mais perto disso que eu já tinha visto em toda a minha vida (...).

(Trecho do conto "Vera", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice, Editora Patuá)