domingo, 17 de agosto de 2014

Boa noite, capitão

Lost photo, acervo pessoal, Sabrina Sanfelice

Meu bloco de notas é de um Encontro Nacional da Memória. Me dei conta, ao abri-lo, que guardei dentro alguns prospectos que me fizeram voltar ao tempo passado. E essas simples impressões constataram que eu não escrevia há muito tempo. Risquei uma palavra repetida nesse parágrafo para não empobrecer a história. A única que quase não conseguimos sinônimos quando estamos falando do que já foi. O tempo. Pronto. Escrevi de novo. É uma palavra que me persegue desde que comecei a pensar em abrir esse bendito bloco de papel. Achei, inclusive, que não estava reconhecendo meus dedos segurando a caneta para escrever. Deitado na cama com a pasta que guarda esses papéis velhos onde está preso o bloco de notas, apoiada nas coxas dobradas, a luminária do criado-mudo proporciona uma sombra dura em cima do texto. Dura como a falta de fé. Algo que atrapalha o reconhecimento da palavra antes que ela surja escrita. A sombra persegue o texto, ainda virgem, puro e não corrompido. Como a morte que assola um recém-nascido antes de abrir os olhos. Como o eco da própria voz ao falar no telefone nos impede de prestar atenção em qualquer coisa falada que não seja nossa própria fala. Viro a folha e, para isso, sou obrigado a destacá-la do bloco de notas. Faz um barulho alto para a hora que passa, já passou, discretamente, da uma da manhã. Novamente menciono o tempo. E mais uma vez digo, com todas as letras: é tarde, muito tarde. É essa ânsia que me assombra enquanto tateio o que passou. Uma espécie de falta de conduta com o que resta. Não há meios de tentar pensar em outra coisa. Não, não é arrependimento. É falta. O que persiste. E até Dali sabia quando era afetado pela existência linear temporal. O que persiste é o que lembramos. E minhas queixas são as mais simples e puras. Eu não me lembro. Me sobra um lapso. E eu bem tento encaixar prazer no presente que possa suprimir esse descontínuo que há em mim. Mas quando estou no auge de qualquer coisa que me conduz a uma experiência excitante e memorável, volto a pensar que logo ela desaparecerá como um sopro. Não porque não seja digna. Como aquele instante em que se apaga uma vela no candelabro antes de dormir. Na maioria das vezes, a fumaça, signo que nos indica que ali houve vida, se dissipa e me deixa. E agora, nesse instante não performático da escrita, nem ao menos tenho uma vela. A luz dura da luminária ligada na tomada me mostra que quanto mais as coisas se tornam efêmeras, mais eu mesmo me torno instantâneo. Um pedaço de cera escorrida na qual o pavio está curto. Eu não tenho tempo para a humanidade absorta em vida. E uma vida rápida para alguém como eu torna a existência insuportável. Agora, para mim, a história se resume num sopro contínuo de milhares de crianças que fazem, juntas, seu primeiro ano de vida. Mais de mil felicidades para serem vividas num único assoprar, excessivamente rápido e devastador, de velinhas coloridas que piscam e voltam a acender. Não sou velho, embora também não seja novo. Sou justamente onde o tempo parece parar e questionar a falta. Não há o que se fazer quando a vida nos pede satisfações de algo que não temos. Um lapso. Não tenho respostas ao que me falta. Minha justificativa é a mesma do ponteiro do relógio. Passo de um minuto a outro sem consciência exata do que houve nesse percurso. Me movo para frente e mesmo passando pelo mesmo ponto diversas vezes não me ocupo em saber onde estou. O meu estar depende de outros ponteiros, que me cobram a exatidão de meus passos. As horas são as mesmas e eu nem as reconheço como minhas. É um fardo pesado demais para um homem não poder ao menos escrever suas memórias. Abdicar-se do que lhe resta sem nem ter certeza de que isso é o resto de algo que o satisfaz. As palavras, nesse caso, são bálsamo seguro, mesmo aquelas que são contadas por mãos alheias. Essas principalmente. Às vezes, por piedade ou gentileza de quem me guarda em algo de atemporal. E enquanto ela escrever, a mão alheia que toca meu rosto nas noites de solidão, eu poderei apagar a luz instantânea do criado-mudo e adormecer como o personagem de uma história qualquer, sem quaisquer certezas ou memórias que já não me convêm mais ter.

Sabrina Sanfelice, num dia qualquer.