Música tema. Janeiro de 2015.
Todos
os dias é dia de caminhar. Andar no trilho da vida, que não nos deixa dormir.
Não há de nos trazer paz. Coisa impulsionada pelo calor das emoções. Noutras há
de não se buscar nada, além do rumo cego que conduz ao vácuo. Aquele barulho
incessante que vem de dentro e diz: anda! anda! Dar com a cara na porta. E não
haverá nenhuma chave. Nem antídotos. Não há para quem reclamar. Só caminhar,
caminhar. Por hora, digo que preciso. Uma venda nos olhos, esses já deslumbrados
pelo vício de viver o que se coloca à frente. Buscar, buscar o caminho. Um
cavalo velho, frouxo, cansado, encostado, em qualquer sombra, amarrado. Hoje
come milho e amanhã, capim. Quando solto no pasto, contempla o horizonte mas
não se movimenta, olha para trás e continua vendo a corda. No pescoço. E nem a
corda existe mais. E nem ele se vê como coitado. Ele aceita sua condição,
condução, coexistência. Aceita que nasceu aprendendo a olhar para frente e
puxar, carregar nas costas esse peso danado da vida. A vida dos outros. Ele é
um pouco a menina com laço vermelho no cabelo que, sentada no banquinho da
carroça, ri de sua desgraça. Ela nasceu há tantos anos e continua pequena. Não
para um segundo sequer de rir. Diz que espanta a infelicidade. E ri alto a
menina. Parece feliz de verdade! É um pouco o velho ranzinza que o chicoteia
com raiva de sua incompletude. E a cada vez que levanta o couro para
bater, sente a ponta ricochetear seu próprio lombo endurecido. E é um pouco o
moço, jovem e bonito, mas por destino, cego, surdo e mudo. Ele contempla a
mesma paisagem que os outros, como um filminho colorido que ficou gravado
dentro dele, o mesmo, todos os dias. E quando largado no pasto, com um
horizonte só dele, o corcel retalhado que um dia foi potro forte, quando não
pode mais ouvir as vidas alheias que, por hora, são as suas próprias, já não
consegue tampouco comer o que lhe é dado. O estômago dói, sente que se esvai
numa inanição vívida, está tudo por um fio. Não sabe que gosto tem sua própria
saliva. Não sabe onde dói, se é nas pernas cansadas da vida ou se no peito
afundado para dentro. Ele vê o buraco cheio de bicheira. E elas estão todas
gordas e sadias, se alimentando de algo que deve ser bom. Curioso, dobra o
dorso e arranca uma lasca, morde sem dó. A dor é tão insana que ele tenta colar
de novo o pedaço, mas é tarde demais. Não há como parar de ver o buraco
sangrando, o sabor doce de sua nova condição. Ao longe, a menina continua
rindo, vindo saltitante em sua direção buscar conforto para sua longa jornada.
O velho morde os lábios e saliva enquanto procura o pedaço de couro que o faz
ter a grandeza que merece. E o moço, hoje, pensa que vai seguir a carroça a pé,
para ver o destino do cavalo. Ele tem alguns segundos, apenas o tempo
necessário para roer a corda e galopar para longe. Mas ele está cansado
demais hoje. E sangra por causa da mordida profunda, autoflagelo que lhe soa
desnecessário nessa altura da vida. Começa, então, a mastigar, passa a engolir
tudo, aos poucos, toda a massa quente e confortável que antes o fazia ficar de
pé. De longe todos olham assustados o cavalo triturando a própria carne, assim,
como se não dessem milho e capim todos os dias. Bicho ingrato! Sua existência
é, aos poucos, bebida morna que desce pela garganta desse ser aterrorizado.
Suas pernas somem, ele já não tem como justificar porque anda. Caem no chão a
cela, os laços, e a crina, ainda bem bonita. A corda fica frouxa e ele sente o
nó em sua garganta. Ainda tenta fuçar no chão o cheiro de seu passado, passar o
focinho só um pouco, uma lembrança, misericórdia. Mas tudo tem cheiro de sangue
fresco. Tem gosto do agora. A abundância da realidade afundou toda a alma flagelada
no solo, restando apenas o espectro neutro de um cavalo. A menina chega e seu
riso paira sobre os olhos fixos do quadrúpede, único sinal de sua presença física.
Ela se assusta com aquele monte de pelos dourados que cobrem a grama. Como era
bonito! Tira delicadamente o tapa-olhos para que ele veja. E ele não mais a
reconhece. O som da risada dela vai ficando cada vez mais longe e em sua visão,
agora alargada, percebe que ela corre rumo ao horizonte, sem medo. Lá ela pode
existir por conta própria. Ela vira para trás, acena um adeus mágico e grita
bem alto: corre, corre! O bicho, esvaindo em sangue vivo, agora cheio de impulso,
dá a última mordida, o corte seco no cordão da vida. Recém-engolido, ele já não
existe mais. Pode, enfim, caminhar. Todos os dias é dia de caminhar. Andar no
trilho da vida. Essa, sim, há de trazer paz. Coisa impulsionada pelo calor das
emoções. Noutras há de não se buscar nada, além do rumo cego que conduz ao
vácuo. Aquele barulho incessante que vem de dentro e diz: anda! anda! Hoje é
dia de caminhar.