sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Três vezes mulher (Amélia)

Transfiguração feminina, Sabrina Sanfelice, 01-01-14


Há dias em que me pergunto sobre a ingênua felicidade da Amélia. Ouço a roupa da mulata bater na pedra na beira do rio enquanto ensaboa e limpa toda sua tristeza em algo inimaginável como a rotina. E o que mais me incomodou foi observar, ao longo de um dia inteiro, a dedicação de uma galinha com seus pintinhos. Ela respondia aos piados pacientemente, o tempo todo, numa cadência perfeita de quem sabe exatamente o que faz. Guiava as pequeninas aves por todo o terreno, sem qualquer hesitação, como se não tivesse dúvidas sobre o futuro, o qual não a pertencia. (...)

(Trecho do conto "Amélia", do livro NósVósElas, de Sabrina Sanfelice, Editora Patuá)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Oculta vaidade

Espelho, espelho seu. Sabrina Sanfelice. Maceió/AL

Com todo desleixo fingido
Grito, aflita, por dentro
Questiono o tempo todo
Por onde estará minha alma?
Se não dançando num espelho?

É triste, é infelicidade
Mas, por hora, não a vejo
Suspiro, apaixonada
O reflexo, por si só é claro
São outros olhos!

O pior de não se ver
É se ver em dupla
Amarrada a fios de cabelo
Numa expectativa insana
Do meu eu-futuro

Infinitas histórias
Contadas uma a uma
Todas, já sei de cor
Um porvir seguro
Tão esperado, vivido
Condenado à narrativas

Na verdade, em suma
Sou pura expectativa
Restos mortais, esquartejados
Minha própria imaginação
Auto-sina, viver de pouco
E para a mente, muito

E quando desisto de mim
Sucumbida em outro
Pelo alheio que não mais está
Ouso virar as costas
Deixar o simulacro
E já sinto o cheiro

Em passos lerdos, se aproxima
Leio sílaba a sílaba
Meu próprio nome
Em qualquer letreiro
E me condeno a você, um eu
Como o rio a Narciso

domingo, 5 de janeiro de 2014

Tira-teima

Alma no beiral, Sabrina Sanfelice

Deixe-me beber
das águas profundas e infinitas
daquilo que reservas pra amanhã

Porque separar a contragosto
todo amor que transpõe os muros
só por medo de ilusão?

O orgulho dos seus lábios
é facilmente corrompido
pelo sabor latente dos seus olhos úmidos

Deixe-me emaranhar nessas tramas
trazer a tona o cadeado
que destranca sua volúpia

Só pra dizer que eu posso
com licença, eu quero
poder dizer, nos seus ouvidos

Palavras de amor
não daquelas que confundem 
aquelas que perdoam

Deixe-me ser pra você
aquilo que você acredita que sou
bem lá no fundo

Sou aquela que limita
com ponteiros e silêncio
como um cubo de gelo

Mas que por dentro
chora, aflita
por um final feliz

Deixe-me
ou viva-me
intensamente

Mas não me poupe
não me tranque para fora
do seu coração

Seja fiel
ao que proclamas quando ama
tua alma infame, que me acolhe

Dia sim, dia não.

Sabrina Sanfelice