Yin Yang, por Sabrina Sanfelice, Paraty, 2008.
Um caso de inocência
Sábado à noite era terrível. Ele só dava conta de
que não tinha nada para fazer quando acordava, lá pelas duas da madrugada,
insone. Passava espiando pelas frestas dos quartos e via os dois filhos, numa
paz gloriosa do sono inocente. A mulher, que tinha passado por rituais sagrados
do final de semana, também dormia, com uma das pernas estirada para cima.
Ele pensava em ver filmes começados na TV a cabo,
em dar uma passada de olho em sites que a essa hora da noite também já eram ingênuos
ou abrir alguma bebida. Mas beber sozinho é tão sem propósito. Então, ele
decidia voltar para a cama e tentar pensar em qualquer coisa até dormir. Normalmente,
esses pensamentos eram memórias. Lembrava sempre de um amigo de infância que
mudou da vizinhança logo após o pai ser internado como alcoólatra. Eles
costumavam dividir refrigerantes destinados ao almoço de domingo, escondidos na
copa de uma alta jabuticabeira.
Nesse domingo, bem cedinho, ouviu vozes estranhas
vindas de fora da casa. Levantou curioso, afinal, onde morava isso era raro.
Não tinha vizinhos, as casas ao lado ambas estavam à venda. Olhou pelo vitrô da
sala de estar e viu uma família que saía da residência à direita da sua e
cumprimentava feliz um homem de terno. Matou a charada na hora: uma das casas
vizinhas fora vendida.
Na hora ele pensou mil coisas, como o tipo de
pessoas que estariam ali, ao seu lado, durante muito tempo ou se eles
reformariam a casa e fariam barulhos indesejáveis. Duas semanas depois, lá
estavam seus novos companheiros de quarteirão. Dois adultos, duas crianças,
mais uma fotocópia de sua própria realidade. Será que ele também era insone?
Conheceram-se em seguida, as mulheres receptivas
e amigáveis já tinham fofocas e segredos enquanto olhavam os filhos brincarem
sem que percebessem mutuamente que, na verdade, examinavam, sem pudor, o
discurso, as roupas, os corpos, o marido e os filhos alheios. Eles, mais que
naturalmente, falaram do imóvel, da rua, do guarda noturno e, no máximo, sobre
futebol. Afinal, esse é o limite de intimidade que se tem com outro homem
estranho. O resto simplesmente não se fala.
A rotina fez com que algumas relações fossem
estabelecidas. As escolas dos filhos, os cabeleireiros das mulheres e, entre
eles, uma cerveja de vez em quando. Quando o time em comum jogava, assistiam na
casa de um ou de outro enquanto as crianças brincavam no quintal. Os
comentários finais do jogo e o horário de janta dos filhos encerravam a relação
amistosa desses bons vizinhos aos finais de semana.
Engraçado ter começado a dormir melhor depois da
chegada dos novos moradores ao lado. Seria insegurança a razão de sua insônia
ou apenas coincidência? Mas foi só falar do diabo... O relógio marcava duas em
ponto. Ele foi para sua angústia de pensar nas possibilidades do que fazer sem
o sono e estava a ponto de desistir quando viu uma luz de fora acender. Era o
vizinho, que chegava com o carro e abria o portão eletrônico.
Colocou um shorts apressado e foi lá fora como
quem vai averiguar um barulho estranho. Deu de cara com o cidadão ligando o
alarme do carro. Acenou com um sorriso como quem indica alívio ao não ver um
rosto estranho. Da outra casa, foi correspondido por um sorriso de surpresa ao
ver uma cara conhecida ali, aquela hora.
O saco plástico da mão do vizinho carregava latas
de cerveja gelada. O plástico suava com o contato do alumínio e ele sentiu
vontade de perguntar qualquer coisa, mas foi barrado pelo respeito à privacidade
alheia. Nem precisou. Entre homens não existe essa frescura de deixar no ar. O
vizinho logo foi relatando que voltava da casa de um amigo e que trazia
cervejas que sobraram do churrasco. Retirou uma da sacola, abriu e estendeu a
mão como quem diz: não ouse recusar!
Mas recusar era tudo que ele não faria. E
sentaram ali mesmo, na calçada em frente às casas, para beber e conversar.
Falavam de tudo, mas o que mais faziam era contar sobre o passado. O álcool é
um grande moldador da memória humana. Chegavam a rir alto quando esqueciam que
as mulheres dormiam e que não queriam ser vistos por olhos curiosos.
Na vigésima noite de insônia com companhia, ele
chegou a pensar que tinha encontrado um amigo. As histórias mesclavam mitos
masculinos com a virilidade precoce de dois adultos que, naquele momento,
voltavam a ser meninos. Que pena que você só apareceu agora! Nós seríamos uma
dupla e tanto se estivéssemos solteiros! Você já viu a gordinha da rua de baixo
pegar o lixo da sarjeta? Ela não usa sutiã e quando abaixa para recolher as
folhas...
E as cervejas suavam com o calor das conversas.
Os ânimos se exaltavam quando falavam juntos a mesma frase e riam,
compulsivamente, com o efeito deslumbrante da bebida. Eram como unha e carne. A
intimidade parecia ter nascido com eles até aquela noite, quando,
acidentalmente, o vizinho bateu em sua coxa direita com a lata de cerveja
gelada e depois, cambaleante, apoiou-se em seu joelho para levantar da sarjeta.
Ele descobriu que não conhecia intimidade até
aquela fração de segundos. Ficou pasmo, parado, não conseguia se levantar para
entrar e o amigo, zeloso, fez menção de que o ajudaria a se levantar se não
tivesse condições de fazê-lo sozinho. A possibilidade de um novo contato físico
o fez dar um impulso e entrar rápido com a desculpa de que a mulher poderia ter
acordado com o barulho.
Nessa noite ele dormiu feito um anjo, assim como
em todas as outras noites de sua vida. A memória, sua mais íntima amiga, era a
única com a qual ele podia beber e saborear todos os prazeres que só lhe eram
possíveis com os olhos fechados pelo sono inocente.
Sabrina Sanfelice, 25/08/13, num caso de insônia induzida.
Um comentário:
a intimidade é algo com o qual poucos sabem lidar...
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