quarta-feira, 13 de maio de 2015

Segregada(mente)

Carta, lembranças e chá. Sabrina Sanfelice. Maio de 2015.

Lamento muitas vezes o silêncio que te habita
Para, depois, ressurgir com uma potência exata de glória
E coloco-me aos seus pés, arranca-me os cabelos
Fios em sépia para eternizar o tempo
Desbotado e inerte por gotas de suor.

Submeto-me à angústia desesperada do hoje
Para, então, amanhã, sentir a intensidade brusca da dor
Estrangulada, tornar-se puro néctar
Ouso provar do meu próprio veneno,
Cultivado cuidadosamente num jardim circular.

Afasto-me, tiro a roupa e roubo a cena
Fogos de artifício para celebrar meu desalento
Para, somente, deixar findar o que há em mim que não tem cura
Demasiado, o prazer, a tortura, a doçura
Tudo, sem exceção, (es), vai...

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Afinal

Cada casa, um coração. Sabrina Sanfelice, 2014.

O que você quer, afinal?
Quem pergunta a quem?
Ouça a pergunta.
Quem?
Ouça.
Afinal.

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O que você quer saber de verdade?


Vai sem direção
Vai ser livre
A tristeza não
Não resiste
Solte os seus cabelos ao vento
Não olhe pra trás
Ouça o barulhinho que o tempo
No seu peito faz
Faça sua dor dançar
Atenção para escutar
Esse movimento que traz paz
Cada folha que cair,
Cada nuvem que passar
Ouve a terra respirar
Pelas portas e janelas das casas
Atenção para escutar
O que você quer saber de verdade

(Marisa Monte, cantada ao vento porque é pra lá que eu vou. Vou vivenciar o que há em mim que preciso ver de verdade.) Tchau!

sábado, 3 de janeiro de 2015

A galope

Música tema. Janeiro de 2015.

Todos os dias é dia de caminhar. Andar no trilho da vida, que não nos deixa dormir. Não há de nos trazer paz. Coisa impulsionada pelo calor das emoções. Noutras há de não se buscar nada, além do rumo cego que conduz ao vácuo. Aquele barulho incessante que vem de dentro e diz: anda! anda! Dar com a cara na porta. E não haverá nenhuma chave. Nem antídotos. Não há para quem reclamar. Só caminhar, caminhar. Por hora, digo que preciso. Uma venda nos olhos, esses já deslumbrados pelo vício de viver o que se coloca à frente. Buscar, buscar o caminho. Um cavalo velho, frouxo, cansado, encostado, em qualquer sombra, amarrado. Hoje come milho e amanhã, capim. Quando solto no pasto, contempla o horizonte mas não se movimenta, olha para trás e continua vendo a corda. No pescoço. E nem a corda existe mais. E nem ele se vê como coitado. Ele aceita sua condição, condução, coexistência. Aceita que nasceu aprendendo a olhar para frente e puxar, carregar nas costas esse peso danado da vida. A vida dos outros. Ele é um pouco a menina com laço vermelho no cabelo que, sentada no banquinho da carroça, ri de sua desgraça. Ela nasceu há tantos anos e continua pequena. Não para um segundo sequer de rir. Diz que espanta a infelicidade. E ri alto a menina. Parece feliz de verdade! É um pouco o velho ranzinza que o chicoteia com raiva de sua incompletude. E a cada vez que levanta o couro para bater, sente a ponta ricochetear seu próprio lombo endurecido. E é um pouco o moço, jovem e bonito, mas por destino, cego, surdo e mudo. Ele contempla a mesma paisagem que os outros, como um filminho colorido que ficou gravado dentro dele, o mesmo, todos os dias. E quando largado no pasto, com um horizonte só dele, o corcel retalhado que um dia foi potro forte, quando não pode mais ouvir as vidas alheias que, por hora, são as suas próprias, já não consegue tampouco comer o que lhe é dado. O estômago dói, sente que se esvai numa inanição vívida, está tudo por um fio. Não sabe que gosto tem sua própria saliva. Não sabe onde dói, se é nas pernas cansadas da vida ou se no peito afundado para dentro. Ele vê o buraco cheio de bicheira. E elas estão todas gordas e sadias, se alimentando de algo que deve ser bom. Curioso, dobra o dorso e arranca uma lasca, morde sem dó. A dor é tão insana que ele tenta colar de novo o pedaço, mas é tarde demais. Não há como parar de ver o buraco sangrando, o sabor doce de sua nova condição. Ao longe, a menina continua rindo, vindo saltitante em sua direção buscar conforto para sua longa jornada. O velho morde os lábios e saliva enquanto procura o pedaço de couro que o faz ter a grandeza que merece. E o moço, hoje, pensa que vai seguir a carroça a pé, para ver o destino do cavalo. Ele tem alguns segundos, apenas o tempo necessário para roer a corda e galopar para longe. Mas ele está cansado demais hoje. E sangra por causa da mordida profunda, autoflagelo que lhe soa desnecessário nessa altura da vida. Começa, então, a mastigar, passa a engolir tudo, aos poucos, toda a massa quente e confortável que antes o fazia ficar de pé. De longe todos olham assustados o cavalo triturando a própria carne, assim, como se não dessem milho e capim todos os dias. Bicho ingrato! Sua existência é, aos poucos, bebida morna que desce pela garganta desse ser aterrorizado. Suas pernas somem, ele já não tem como justificar porque anda. Caem no chão a cela, os laços, e a crina, ainda bem bonita. A corda fica frouxa e ele sente o nó em sua garganta. Ainda tenta fuçar no chão o cheiro de seu passado, passar o focinho só um pouco, uma lembrança, misericórdia. Mas tudo tem cheiro de sangue fresco. Tem gosto do agora. A abundância da realidade afundou toda a alma flagelada no solo, restando apenas o espectro neutro de um cavalo. A menina chega e seu riso paira sobre os olhos fixos do quadrúpede, único sinal de sua presença física. Ela se assusta com aquele monte de pelos dourados que cobrem a grama. Como era bonito! Tira delicadamente o tapa-olhos para que ele veja. E ele não mais a reconhece. O som da risada dela vai ficando cada vez mais longe e em sua visão, agora alargada, percebe que ela corre rumo ao horizonte, sem medo. Lá ela pode existir por conta própria. Ela vira para trás, acena um adeus mágico e grita bem alto: corre, corre! O bicho, esvaindo em sangue vivo, agora cheio de impulso, dá a última mordida, o corte seco no cordão da vida. Recém-engolido, ele já não existe mais. Pode, enfim, caminhar. Todos os dias é dia de caminhar. Andar no trilho da vida. Essa, sim, há de trazer paz. Coisa impulsionada pelo calor das emoções. Noutras há de não se buscar nada, além do rumo cego que conduz ao vácuo. Aquele barulho incessante que vem de dentro e diz: anda! anda! Hoje é dia de caminhar.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Reticências...

Adeus, 2014. Sabrina Sanfelice, 31 de dezembro.

Os primeiros fogos de artifício colorem o céu de 2015! Olho para cima e depois vislumbro no horizonte, ainda quente, o adormecido ano de dois mil e quatorze. Suas pálpebras começam a baixar e ele ainda me acena, respirando fundo, cada vez mais lentamente e calmamente, como se aos poucos sonhasse com seus melhores momentos para cada um dos seres humanos que tocou. E esboça um sorriso pelo canto da boca, como uma criança sonhando com as longas tardes de vestígios do ontem, brincadeiras e risadas, os motivos exatos de cada uma das alegrias alheias.

E me despeço, como aquela que sai de cena, por opção própria, mas que não deixa de agradecer toda a experiência mágica que a transformou em cada hora ou segundo de possibilidades. Na minha mão esquerda, seguro as mãos daqueles que tocaram fundo meu coração. Amigos, amores, tão íntimos, tão queridos, que recitaram poemas ao pé do ouvido quando tudo tinha jeito de festa e, noutras vezes, o trágico sabor da desgraça. Mãos quentes, mãos de gente, calor humano que vai alastrando o corpo todo até virar um abraço forte e terno, que aconchega, acalma, perdoa, absolve, apaixona. Na mão direita, seguro firme as páginas de um livro, novo, o primeiro, a satisfação, a realização, o amor. Tão sublime, seu peso, na balança da vida, leve como pena, forte como chumbo. E leio, na primeira página, velha e sábia: verdade.

O que sobra de mim, nessa imagem sacrossanta, agarrada ao pedestal que me sustenta, um anjo que rege a própria vida e assim se condena à própria sorte, as duas mãos ocupadas com a vida, as escolhas, sobra, então, o coração. Assim, exposto, como o sagrado, parte espinho, parte flores, pode-se ver pulsante, vivo, rubro, apaixonado. Nas veias que sobem pelo pescoço, nota-se um certo volume, o aperto que o sangue vermelho vibrante causa ao ir para o cérebro, como quem diz: temas, mas deixe-me fluir! E aos poucos, ao tomar conta de tudo, vai impulsionando a vida, essa, que segue, rumo ao inesperado ano novo!

Pego um copo de qualquer coisa, água e vinho, porque a euforia me contagia, essa ansiedade louca de correr e pular no pescoço da vida. Ouço cada rojão que estoura no céu, danço e rodopio, no meio da rua. E já não sei quando parar, qual será o primeiro rosto a olhar quando abrir os olhos. E escolho abri-los ainda girando, para mostrar que posso olhar para tudo ao mesmo tempo, sem perder nada, porque não tenho posse do que me faz viva e ao mesmo tempo contenho cada gota do que já preenche o que sou. E vejo, de novo, no horizonte, agora totalmente adormecido, embalado pela experiência viva da única coisa que faz com que possamos ter certeza de qualquer coisa que fomos, somos e talvez, talvez... Fecho os olhos, em prece, junto com aquele que vai embora, agora, totalmente embalado pelo sono dos ébrios e desejo. Uma estrela cadente pode ter cruzado o céu nesse momento, não saberei. Todas as portas se abrem, uma a uma, sem chaves, tenho o poder de trancar o que quero, atravessar... Mas, por hoje, só por hoje, elas permanecem abertas na alma desse ser um pouco mais transformado.


Feliz, feliz 2015!

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Lançamento do meu livro de contos "Nós Vós Elas"



Queridos amigos e leitores do blog:

Compartilho minha alma com vocês...


A Editora Patuá e o Instituto Hilda Hilst (IHH) convidam a todos para o lançamento do livro "NósVósElas", contos de Sabrina Sanfelice.

O evento será realizado dia 30/10 (quinta-feira) a partir das 19h no Instituto Hilda Hilst - Rua João Caetano Monteiro, s/n - Pq. Xangrilá - Campinas/SP

A entrada para o evento é gratuita e o livro estará à venda por R$ 35,00 (ATENÇÃO: pagamento apenas em dinheiro ou cheque).

Com a performance teatral “Janelas para uma mulher”.

Direção e atuação: Juliana Calligaris | Orientação: Leticia Olivares | Texto de Juliana Calligaris baseado no original de Monalisa Vasconcelos

Com bebidinhas do Bar do Bico antes, durante e depois (cheque, dinheiro ou cartão de crédito).

O livro já está à venda em nosso catálogo. As compras pelo site podem ser parceladas em até 12x. Aproveite!


domingo, 17 de agosto de 2014

Boa noite, capitão

Lost photo, acervo pessoal, Sabrina Sanfelice

Meu bloco de notas é de um Encontro Nacional da Memória. Me dei conta, ao abri-lo, que guardei dentro alguns prospectos que me fizeram voltar ao tempo passado. E essas simples impressões constataram que eu não escrevia há muito tempo. Risquei uma palavra repetida nesse parágrafo para não empobrecer a história. A única que quase não conseguimos sinônimos quando estamos falando do que já foi. O tempo. Pronto. Escrevi de novo. É uma palavra que me persegue desde que comecei a pensar em abrir esse bendito bloco de papel. Achei, inclusive, que não estava reconhecendo meus dedos segurando a caneta para escrever. Deitado na cama com a pasta que guarda esses papéis velhos onde está preso o bloco de notas, apoiada nas coxas dobradas, a luminária do criado-mudo proporciona uma sombra dura em cima do texto. Dura como a falta de fé. Algo que atrapalha o reconhecimento da palavra antes que ela surja escrita. A sombra persegue o texto, ainda virgem, puro e não corrompido. Como a morte que assola um recém-nascido antes de abrir os olhos. Como o eco da própria voz ao falar no telefone nos impede de prestar atenção em qualquer coisa falada que não seja nossa própria fala. Viro a folha e, para isso, sou obrigado a destacá-la do bloco de notas. Faz um barulho alto para a hora que passa, já passou, discretamente, da uma da manhã. Novamente menciono o tempo. E mais uma vez digo, com todas as letras: é tarde, muito tarde. É essa ânsia que me assombra enquanto tateio o que passou. Uma espécie de falta de conduta com o que resta. Não há meios de tentar pensar em outra coisa. Não, não é arrependimento. É falta. O que persiste. E até Dali sabia quando era afetado pela existência linear temporal. O que persiste é o que lembramos. E minhas queixas são as mais simples e puras. Eu não me lembro. Me sobra um lapso. E eu bem tento encaixar prazer no presente que possa suprimir esse descontínuo que há em mim. Mas quando estou no auge de qualquer coisa que me conduz a uma experiência excitante e memorável, volto a pensar que logo ela desaparecerá como um sopro. Não porque não seja digna. Como aquele instante em que se apaga uma vela no candelabro antes de dormir. Na maioria das vezes, a fumaça, signo que nos indica que ali houve vida, se dissipa e me deixa. E agora, nesse instante não performático da escrita, nem ao menos tenho uma vela. A luz dura da luminária ligada na tomada me mostra que quanto mais as coisas se tornam efêmeras, mais eu mesmo me torno instantâneo. Um pedaço de cera escorrida na qual o pavio está curto. Eu não tenho tempo para a humanidade absorta em vida. E uma vida rápida para alguém como eu torna a existência insuportável. Agora, para mim, a história se resume num sopro contínuo de milhares de crianças que fazem, juntas, seu primeiro ano de vida. Mais de mil felicidades para serem vividas num único assoprar, excessivamente rápido e devastador, de velinhas coloridas que piscam e voltam a acender. Não sou velho, embora também não seja novo. Sou justamente onde o tempo parece parar e questionar a falta. Não há o que se fazer quando a vida nos pede satisfações de algo que não temos. Um lapso. Não tenho respostas ao que me falta. Minha justificativa é a mesma do ponteiro do relógio. Passo de um minuto a outro sem consciência exata do que houve nesse percurso. Me movo para frente e mesmo passando pelo mesmo ponto diversas vezes não me ocupo em saber onde estou. O meu estar depende de outros ponteiros, que me cobram a exatidão de meus passos. As horas são as mesmas e eu nem as reconheço como minhas. É um fardo pesado demais para um homem não poder ao menos escrever suas memórias. Abdicar-se do que lhe resta sem nem ter certeza de que isso é o resto de algo que o satisfaz. As palavras, nesse caso, são bálsamo seguro, mesmo aquelas que são contadas por mãos alheias. Essas principalmente. Às vezes, por piedade ou gentileza de quem me guarda em algo de atemporal. E enquanto ela escrever, a mão alheia que toca meu rosto nas noites de solidão, eu poderei apagar a luz instantânea do criado-mudo e adormecer como o personagem de uma história qualquer, sem quaisquer certezas ou memórias que já não me convêm mais ter.

Sabrina Sanfelice, num dia qualquer.