
Capítulo VI
Objeto de Desejo
Não podia mais esperar para voltar ao sebo e tocar os dedos no livro que tinha feito minha mente parar de raciocinar para experimentar o desequilíbrio, o caos, mas principalmente, o desejo.
Muitas vezes eu me acho e me perco como se esse movimento fosse algo nato em meu ser, como se a trajetória de mudança pudesse significar, em todos os sentidos, um leve empurrão do tempo que se move em acordes controlados para proporcionar aquilo que chamamos de "surpreendente".
Ao caminhar pela rua podia sentir a mesma cena se repetindo. O mesmo cheiro do café, a mesma salivação pelo primeiro gole, o golpe da memória que me dizia com todas as letras que eu era um viciado pelos pequenos prazeres de uma rotina na qual eu poderia ser ao mesmo tempo o autor e o personagem de meu próprio livro.
Entrei e, num ato impulsivo pela busca de meu anseio mais secreto, esqueci todo o resto para saborear a angústia de chegar à prateleira e tocar os dedos em meu mais novo “objeto de desejo”.
O corredor parecia um labirinto quando visto de longe. As garçonetes, na tentativa de serem gentis pelo meu tempo de clientela, se colocavam no caminho como se fossem peões num tabuleiro de xadrez. Eu, na minha fúria por derrubar todos os muros que me impediam de ver a luz, cheguei a ser grosseiro a ponto de falar “bom dia” ao mesmo tempo em que emendava a frase “não me traga café nem me ofereça nada que eu não peça”.
Meus pés quase não tocavam o chão quando fiz a curva que me levaria à prateleira-alvo. Mas, minha mente quase colapsou quando meus olhos mostraram uma figura estranha, jamais vista no local, no mesmo lugar onde meu tão sonhado objeto estava posto.
Procurei usar daqueles artifícios dos livros de auto-ajuda do tipo: “não seja tão pessimista, existem vários livros na mesma prateleira”. Mas, como não pensar em nada estranho depois dos últimos acontecimentos em minha vida? Fui forçado a contar com a possibilidade de tudo poder acontecer, até mesmo de, num ato de desespero, arrancar o livro das mãos daquela velha senhora.
Antes do último passo que eu daria em direção ao meu objeto de desejo, a voz dela, que mais lembrava a de minha mãe, deixou-se ressoar no ambiente.
Ulisses. É você?
Olhei bem seu perfil quase coberto por um livro e não a reconheci. Mas, num tom de educação afirmei que sim.
Chegou tarde demais. O que você procura não está mais aqui.
E como você sabe o que procuro? Por sinal, não te conheço. Quem é você?
Meu nome é... ou melhor, não preciso dizer meu nome. Isso não importa. O que importa é que você chegou tarde demais para quem procura alguma coisa.
Olha... me desculpe senhora, não quero ser rude, mas minha vida está tão confusa ultimamente que não sei se realmente quero começar uma conversa como essa, com tantos mistérios. Só quero pegar um livro e vou embora.
Você não querendo mistérios? Então para que quer um livro que nem o nome sabe? Não seria contraditório demais alguém querer algo que não sabe o que é e ao mesmo tempo fugir da palavra mistério?
Talvez. Mas o que eu quero não é o mistério. Eu só desejo ser surpreendido.
E você acredita que essa sensação esteja em outra coisa senão em você mesmo, meu filho?
Deixa eu te dizer uma coisa. Não são as pessoas ou as coisas que nos surpreendem. Somos nós mesmos, quando numa fração de segundos nos permitirmos mais "ser" do que "não ser", quando nos permitimos ver, sentir, cheirar, tocar, amar....
O ser humano é feito de muitos elementos e um deles é o vazio. Um espaço que precisa ser preenchido como páginas de um livro em branco. Como folhas de um caderno velho no qual só enxergamos borrões do tempo, em línguas que só aprenderemos a falar depois que soubermos quem verdadeiramente somos.
É como abrir um diário, numa data aleatória e perceber que nunca viveu aquilo porque as folhas se encontram numa dimensão futura que nos permite ter saudade de nós mesmos.
Estranho a senhora dizer isso tudo. Eu sinto como se te conhecesse, como se tudo isso fosse necessário, mas a minha ansiedade sonha pelo momento em que eu puder me aproximar do livro e por isso eu não quero ouvir mais nada. Por favor, me deixe sozinho.
Claro. As palavras e os pensamentos têm a força que controla todos os impulsos. Vou te deixar a vontade.
Só não esqueça, Ulisses, de que o desejo é a forma mais egoísta e cruel que nos foi imposta para que esqueçamos quem somos para querermos ser apenas um fragmento do que queremos “parecer”. O desejo nos dá a sensação momentânea de sermos divinos, enquanto ainda somos humanos.
Obrigado pelas palavras Lúcia. Mas, por hora, quero apenas satisfazer meu desejo.
Num impulso frenético que mal deixou com que a velha senhora se afastasse da prateleira, meus olhos se puseram a buscar pelo livro. Poeira, pedaços de etiquetas amassadas e cheiro de mofo se misturavam aos meus sentidos enquanto meus olhos buscavam pela descrição mental criada no passado.
Horas se passaram em vão sem que eu percebesse que não o encontraria. Afinal de contas, como aquela mulher sabia que o livro não estaria aqui? Como eu poderia ter ignorado as palavras dela sem que pedisse antes por alguma explicação? Quem era aquela mulher?
Numa retrospectiva rápida não me recordava de tê-la visto em nenhum outro momento. Mas, meu coração saltou a boca quando lembrei que há pouco tinha conversado com alguém que não conhecia, mas que sabia meu nome e que eu, sem perceber, tinha dito o dela com todas as letras: Lúcia.
Estou em desespero. Acho que morri e estou no inferno. Não é possível que, de uns tempos pra cá, minha vida tenha se tornado esse emaranhado de fios de cabelos dentro de um ralo sujo. Eu preciso de uma luz.
O senhor pediu uma luz? – disse a garçonete com um sorriso no rosto. Só ofereço porque o senhor mesmo disse que não era para oferecer nada sem que tivesse pedido, mas, como pediu, aqui está.
Teria eu pensado tão alto assim? Nossa, devo estar em devaneios.
Peguei o papel da mão da garota e caminhei até a porta de saída para ler na claridade. Papel cartão, letras minúsculas, marcas de carimbo, datas e finalmente reconheci: um cartão de empréstimo do próprio sebo.
Na última linha, o campo da data indicava 29 de junho de 2009. No lugar do nome do livro, um código apontava o número de tombo do exemplar e, no nome, em letra de mão “Lúcia Ashmey”. O próximo campo, que deveria ter a data da devolução, indicava que eu deveria ler uma observação atrás do cartão de empréstimo.
Virei.
“Código de procedimento 163: Único exemplar retirado pelo próprio autor. Motivo 177: Ordem cumprida para fins de proibição de veiculação de conteúdo. Retirada pública de circulação da obra”
Esperar pelo surpreendente é como chegar numa bifurcação. Você espera que o caminho escolhido te leve ao delírio, ao prazer, mas em nenhum lugar, nem mesmo nas letras pequenas no documento diz que a espera é seguida de prazer. O máximo que se pode ter é sorte. Do mais, que os desesperados se contentem com a decepção.
A expectativa é o desejo dos fracos.