sábado, 6 de setembro de 2008

Carta a Alberto

"Outono", por Sabrina Sanfelice
Capítulo V

Carta a Alberto


Era tarde da noite quando Ulisses resolveu escrever ao seu melhor amigo. Alberto era um homem sério, que usava bigode desde quando entrou na faculdade. A única coisa que o desmontava era falar de Maria Alice, a mulher com a qual sonhou ter filhos e formar uma família e que, no calar da madrugada, sumiu como uma ladra libertina levando com ela tudo o que Alberto tinha conseguido acumular durante esses anos todos: uma imagem, reputação e esperança.

Na gaveta da cômoda ele encontrou seu bloco de papéis especiais que usava para escrever com sua caneta tinteiro, herança do avô Edmundo, que lhe ensinou as primeiras letras. No armário, recolheu o resto das coisas necessárias para deixar a carta pronta para ser postada no dia seguinte, logo cedo. Sentado em sua escrivaninha preferida, fixou os olhos no papel e começou a pensar em como deveria contar os detalhes que estavam atormentando sua vida.

Ulisses era muito excêntrico e detalhista para simplesmente começar uma carta com a data do dia ou qualquer saudação estúpida. Ele sabia que se fizesse isso, iria provocar tanto medo em Alberto que o coitado sairia de outro estado para vir correndo ver o que estava acontecendo. Então, como falar de paranóias sem sobressaltar a própria normalidade humana? Incrível como as pessoas pensam que as anomalias estão escondidas atrás de rostos estranhos, misteriosos ou deformados enquanto a loucura, em sua esperteza, usa umas das máscaras mais conhecidas de todos nós: o habitual.

Molhou a caneta e levou-a devagar até o bloco. O tempo para que sua mente pensasse era o mesmo no qual a tinta não poderia pingar e manchar o papel. Ulisses sabia que esse vácuo entre o pensamento e o movimento da caneta era exatamente onde residiam seus mais misteriosos insights. No entanto, como se o tempo e o espaço já não fizessem mais diferença, os pensamentos se alinharam e as palavras começaram a ficar nítidas.

Outono. Mês das folhas secas. Ainda está quente, mas minha mente repousa num dia frio.

Caro Amigo,

É muito difícil olhar nos rostos que ficaram escondidos em nossa mente. Talvez pelo simples fato desse olhar estar ligado a uma imagem projetada no fundo daquilo que um dia conhecemos.

É tão mais fácil cantar e passar a vida sonhando...

É que já não durmo mais. E quando durmo, meus sonhos estão cercados por vultos que me apontam placas que indicam todos os lugares ao mesmo tempo. Como se no meio de um abraço e lembranças de odores mágicos, chegasse uma forte tempestade.

O presente nasce morto quando fingimos não viver mais. A indiferença segura pelas mãos lembranças de um dia nublado. As folhas secas se amontoam nos pés, mas preferimos olhar a luz da Lua.

E sigo frio até o amanhã tempestuoso, sobrevivendo ao que resta, angustiado. O vento gélido da inspiração e a ardência vermelha dos meus olhos demonstram a falta de controle e a sombra de alguém que agarra com os dentes cada detalhe que fazem do todo uma única desgraça.

Só sobrevivo ao medo, que sobe e desce, desanimado. Você, de carne e osso e uma espada. Com os olhos fundos de buraco, a boca cheia de sapos e a matéria crua, navalhada.

Dentro, uma simples luz que pisca de um lado para o outro. Um entra e sai que atordoa. Os olhos se fecham a cabeça se abaixa. Labirinto de prazeres, egoísmos e necessidades.

Numa ponta um desejo errado e na outra o mesmo descontrole. Na saída um letreiro vermelho pisca forte anunciando que ali está o final. E quando os corpos chegarem amortecidos, retalhados, estará escrito: tarde demais.

Onde estarão os filósofos, que já não andam mais pelas ruas de Atenas?

Quem és tu?
Que não me trazes explicação?
Não mudas o que sinto, mas afetas o que tenho?

(Apaga-se a luz e tudo se torna silencioso)

Minha alma está calma e ao mesmo tempo eufórica.

Escuta, escuta, escuta.
E percebo que não são os sentidos que determinam.
É aquilo que não vejo.
Aquilo que preciso, somente um pouco...
...caro amigo.

Porém, não existe limite para a busca daquilo que precisamos.

Ulisses

20 comentários:

Ariana Luz disse...

bem verdade,é tudo verdade.

Anônimo disse...

para comentar esse post, recorro ao nome de uma novela do sbt: "simplesmente maria". tudo pra dizer que este post está "simplesmente sabrina".
em tempo: é vero o fato de que usa bigode é sério, seríssimo.

Anônimo disse...

Muito bom Sá... conceito do habitual foi o melhor!!! Realmente muitas coisas se escondem no habitual que na verdade de normal nada tem!

J.F. de Souza disse...

Tô adorando o desenrolar da estória...
Apesar da notória "quebra" a partir do 4to capítulo...

Apesar da escassez de tempo que vem no pacote da vida adulta, peguei pra ler cada linha do que você escreveu aqui...
Escrito bastante convidativo e estimulante...

Também adorei as "ilustrações"! =)

Apareça mais vezes no EscúchamePorra!

Ah! E visite, também, este blog aqui:
http://blogdesete.blogspot.com

=*

J.F. de Souza disse...

Ainda assim, não deixe de ler os poemas das outras Cabeças! São excelentes!!! =)

Talvez eu coloque algo lá depois do almoço, lá pelas 14h... =)

=*

Maíra Colombrini disse...

Adorei. Adorei. Adorei.
"outono, m6es de folhas secas..." sensacional.
Adoro cartas... deveria voltar a escrever-las.

Beijos!

J.F. de Souza disse...

Olha, Sabrina... Adorei o poema-resposta! (Tô doido pra colocá-lo ná no Escúchame... Posso?)

Ah! A propósito... Qualquer desses combustíveis pode servir!

J.F. de Souza disse...

O EscúchamePorra e o B7C???


MAS É CLARO!!! =D



Te juro que, quando eu colocar os links no EscúchamePorra, retribuirei a gentileza!


=*

Alessandra Castro disse...

De uma delicadeza fenomenal, vc soube retratar bem os sentimentos neste texto. Juro que até uma brisa fria eu senti aki. ;)

Glayce Santos disse...

Obrigada pelo coemtario no meu blog! Belas palavras sobre fotografia!
A proposito, seu blog é delicioso...gegeg A fotos tb!

beijos

Fernanda Leturiondo disse...

oi, Sabrina. queria ter vindo aqui antes agradecer seu comentário, mas meus dias não deixavam.. agora cá estou e gostando muito daqui. fotos lindas, texto instigante.. muito bom

viro sua visitante

tmb sou fotógrafa

um abraço

J.F. de Souza disse...

Quero mais! Mais escritos! =P

=*

J.F. de Souza disse...

Dê uma olhada nesse poema passado que eu escrevi:

http://blogdesete.blogspot.com/2006/08/argila.html


=)


=*

J.F. de Souza disse...

Bom... Na verdade... Não!

Verdade! Não foi proposital!

Na verdade, este último escrito meu foi uma resposta ao escrito presente no blog http://mude.blogspot.com !

Só depois que eu coloquei o escrito aqui é que me lembrei do "Argila"... E, de fato, acaba por parecer "complemento", de certa forma...

Mas não foi proposital.

Cesar Dutra disse...

"...minha mente repousa num dia frio"

Me leva pensar em como a estação fria daquilo que sentimos em uma piscadela transporta pra o calor, tudo que pensamos.

a mente e suas estações não determinadas.

bj

J.F. de Souza disse...

Outra pergunta: me explica por onde?

Fernanda Magalhães disse...

A mente e suas insanidades... Desculpe viajei aqui.

Lindo texto...

Continue escrevendo :)

J.F. de Souza disse...

Bom... Se vc der uma olhada boa no meu perfil do Blogger, vai ver que tem meu email e meu MSN lá! =P

Pode usar qualquer um dos meios que você preferir! =)

=*

Ariana Luz disse...

é Sabrina..mais é muito bom ser excessão =]
e seria bom curtir um filminho contigo tbm!

J.F. de Souza disse...

As releituras, às vezes, são necessárias... E como são boas, às vezes...

E é só relendo este capítulo agora que eu, de certa forma, estou conseguindo entender essa "quebra"...

Sim, foi proposital!
E, ao mesmo tempo, não foi!