quinta-feira, 31 de julho de 2008

O despertar

Foto: Sabrina Sanfelice (auto-retrato com os pés)


Capítulo III

O despertar

Me sentia um pouco sonolento quando escutava músicas clássicas forçado. Era como se alguém me embalasse ao som de canções de ninar. Mas eu estava lá para vê-la mais uma vez. Nunca mais com a mesma intensidade de antes, quando eu sentia a emoção de cada troca de compasso, mas eu não poderia ser tão insensível.

Com um terno apertado e meus óculos de leitura, sentei na primeira fila esperando que ela me olhasse nos olhos antes de começar. Era só esperar esse momento para que eu pudesse fechar meus salões internos e tentar raciocinar meus dias conturbados, minha ânsia de voltar a tocar aquele livro, o cheiro forte dos meus instintos de homem se manifestando no mesmo instante em que eu precisava voltar-me a introspecção absoluta. Que caos seria esse que me consumia por dentro e ao mesmo tempo me deixava leve como nos tempos de criança, quando eu não via a hora do próximo dia chegar e poder rever os rostos de meus primos distantes, que vinham só de vez em quando, mas que estavam bem ali, dormindo ao meu lado.

Ela me mirou com aquele olhar doce e suave, entrelaçando os dedos em sinal de que começaria a qualquer instante. Fitei seus olhos com um sorriso de aprovação que naturalmente dizia “você consegue!” e abaixei levemente a cabeça para que ela começasse a tocar sem demora. Essa espera, esse intervalo entre a minha liberdade de pensamento e a expectativa de Cláudia parecia o inferno, um lugar em que minha mente repousa sob o sentimento mais estranho de agonia pedindo encarecidamente para ser livre.

O som da primeira nota musical deveria parecer um gozo, mas se tornou tortura quando comecei a ficar enjoado a ponto de precisar sair correndo para ir ao banheiro vomitar. Era como se a música me fizesse prisioneiro dessa agonia inquietante de não conseguir agir. Lavei o rosto várias vezes me olhando no espelho e morrendo de remorso, vergonha, desespero puro. Mas o momento era oportuno para uma fuga justificada, uma doença inventada as pressas para correr atrás de meu sonho lúcido. Minha mente alternava entre voltar a platéia e não me encher de arrependimento e correr sem parar, sem rumo, até cansar e conseguir ter idéia da minha primeira busca. Não podia mais adiar e ela não pararia de tocar, nem hoje, nem nunca, a música que já não embala mais meu coração, a música que me atira para longe, que me mata aos poucos, de tédio.

Tirei o paletó devagar enquanto minha pulsação aumentava aos poucos nas veias, quase igual cólica intestinal nervosa. Desatei o nó da gravata e espatifei os cabelos com as mãos. Pensei em começar a correr dali mesmo, mas tive a súbita vontade de tomar qualquer coisa forte antes, um conhaque, uísque ou qualquer coisa que me fizesse sentir o sangue esquentar. Passei no bar com cara de quem já estava bêbado e pedi com toda coragem o que tinha de mais forte. Nunca tinha feito algo parecido. Virei a bebida sem perguntar o que era.

Sem mais esperar por qualquer coisa que pudesse me barrar, saí correndo num impulso rápido, passando por todas as escadarias do Teatro, como se eu pudesse flutuar pelo tempo, sem que meus pés estivessem tocando o chão. Era como se cada vez mais as solas de meus sapatos estivessem pisando mais alto nos ares daquele espaço, ao mesmo tempo em que a velocidade diminuia para que a gravidade pudesse me fazer subir, subir...

Acabei saindo pelo arco da porta da frente, quase nú, já há uns três metros do chão, só de meias, cuecas e a gravata que insistia em cobrir parte de meus olhos. Do alto apreciava a vista da praça central que parecia um cartão postal de banca de jornal. Minha respiração ia e vinha, calma e constante, como se eu estivesse em sono profundo. Pensei bem forte na paisagem da minha terra natal, um lugar onde eu gostaria de passar voando, onde admirava os balões de São João que subiam alto e lá de cima poderiam contemplar os montes que eu demorava horas para subir a pé. Uma sensação de clareza absurda envolveu meu ser, como muitos descrevem a passagem da morte para a vida etérea, rodopiando no ar como fogos de artifícios que sobem e descem, acendem num auge e apagam lentamente deixando saudade...

Fiquei suspenso por algumas horas, quase em estado catatônico, passei entre várias fases da minha vida, dos pés de limão a primeira transa, dos olhos de minha mãe lacrimejando em frente ao televisor antes de ir para cama ao cheiro de chuva e tijolo velho de construção quando rabisca o chão num dia de sol. Eu estava pleno, inteiro, dividido em fractais que se juntam aos poucos formando um desenho plano e chapado do meu próprio rosto estampado numa folha de papel, desenhado por uma criança canhota e giz de cera. Eu era plasmático, eu estava feliz pela primeira vez em minha vida, como nunca tinha estado em nenhuma situação sóbria e material. Eu era aquilo que alguns chamam de espírito, outros de alma, essência, não-material, etéreo, energia, luz, nada. Eu era um tolo e nada melhor do que ser um tolo.

Fui agarrado pelo braço com tanta força que meus olhos saltaram pela face estreita.
Acorda Ulisses! Pelo amor de Deus, acorda! Você desmaiou? O que houve? Meu Deus, fale alguma coisa! Pode me ouvir? Ele está convulsionando Pires, tenho certeza!
Calma minha Lady. Você deve ter tido um pesadelo.
Pesadelo? Ulisses, você está fora de si. Por favor, tente se acalmar, já vamos chamar uma ambulância.
Não há necessidade. Posso me levantar sozinho e ir embora caminhando de braços dados com você.
Que cheiro é esse? Você andou bebendo? Como? Porque você não saiu da cadeira e no caminho estávamos juntos. O que está acontecendo aqui?
Calma Cláudia. Podemos conversar em casa?
Se você diz que está se sentindo bem, mas eu dirijo.
Tudo bem. Só me leve para casa. Preciso voltar a dormir, urgente minha Lady, urgente.

9 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom Saz... animal... pulsação aumentando igual cólica intestinal, e pesadelos!!!!!!! ;)

dri dezotti disse...

tédio de amor acabado...
o avesso de toda paixão:
o que queria engolir vira vômito
o que queria ficar dentro
vira diarréia
o que queria permanecer vira fuga
o que queria viver
vira morte

Anônimo disse...

é uma pena vc não revelar o que ele tomou, pois fiquei aqui querendo algo que me faça subir, subir numa golada só.

L. Medjai disse...

"Não podia mais adiar e ela não pararia de tocar, nem hoje, nem nunca, a música que já não embala mais meu coração, a música que me atira para longe, que me mata aos poucos, de tédio."

Simplesmente, isso parece resumir tudo que me incomoda há alguns meses já. Não resumindo com o que penso ou sinto, mas sim com o que pensaram e sentiram, entende?

..."Mas eu era um tolo e nada melhor do que ser um tolo", pelo menos naquele momento.

beijão e parabéns de novo. Fico cada hora mais admirado com a sua escrita.

Maíra Colombrini disse...

Adoro quando eu consigo ver de onde o autor tirou a parte verídica do texto de ficção e principalmente quanto consigo sacar a diferença entre ficção e realidade. Ao pelo menos eu acho! :o)

Beijocas!

Anônimo disse...

Primeira vez aqui, gostei muito realmente escrita superior, profundo, um beijo. J

Cesar Dutra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cesar Dutra disse...

As sensações permitem nossas referências e criam emoções. Quando as percepções relacionam as sensações criando outras referências, não é que você perdeu o gosto pela música clássica, talvez seja necessário apenas, que você ouça outra pessoa tocar.

JOTA ENE ✔ disse...

Interessante como saiu tão bem