segunda-feira, 14 de julho de 2008

Vestido vermelho

foto de Howard Schatz

Capítulo II

Vestido vermelho

Sonhei com você hoje.
Mais um daqueles seus sonhos?
Não. Acho que esse foi diferente. Me deixou intrigado.
Esquece Ulisses. Vamos nos concentrar um pouco. Você precisa me ajudar a ficar calma. Acho que não quero saber de sonhos agora.
Cláudia, você acredita que os sonhos sejam controlados pela nossa própria mente ou por algo externo?
Ulisses! Não adianta! Você não me escuta mesmo! Tchau.
Cláudia! Cláudia!

Por mais que eu adorasse a companhia de Cláudia, naquele momento nada seria tão interessante do que pensar a respeito do meu último sonho. Será que seu eu fosse subitamente até a livraria conseguiria segurar na mão aquele livro? Claro, eu já tinha visto alguma coisa na televisão sobre projeção astral, coisas sobre espiritismo também afirmavam que podemos sair livres a cada noite e voltar para casa sãos e salvos. Então, se por um minuto eu aceitasse essas idéias, poderia ir até a Livraria e, de olhos fechados, colocar a ponta dos dedos na prateleira, sentindo o toque áspero do papel pardo. Era uma sensação estranha desafiar todos os meus conceitos pré-formados sobre a vida, a morte, a ciência e meu ateísmo. Era como se eu pudesse criar formas, máscaras e personagens que despertassem em mim uma idéia irreal, surreal sobre tudo aquilo que normalmente eu acharia besteira.

Tentei desviar o pensamento com outro, alterando a imagem do livro pela preocupação com o concerto de Cláudia. Ela era sempre tão linda quando sentava naquele piano. Parecia outra pessoa, mais forte, menos séria e ranzinza. O movimento do corpo sobre o banquinho pequeno lembrava uma dançarina frenética, daquelas com roupas coloridas, que encarnam um espírito e dão um show. Ao compará-la com essa idéia, senti-me tímido, como se alguém pudesse ler meus pensamentos, minhas intimidades, saber, por um momento, o que eu desejava, quais eram meus erotismos. Cláudia ficaria brava se soubesse que alguém andou lendo minha mente, justamente nesses momentos em que eu a imaginava num banquinho, erotizada, sendo aplaudida por milhares de outros homens.

Desci a rua com intenção de comer alguma coisa na próxima padaria, mas fui acometido por um cheiro excêntrico, totalmente feminino, atravessando a rua. Uma mulher alta, magra, com cabelos vermelhos, passou por mim como um vento forte em meio a uma tempestade. Todos os seus odores, cores e sensações me arrastaram. Eu a vi em câmera lenta, o balanço do vestido vermelho, o barulho exato do salto do sapato com fivelas douradas e a correntinha de ouro caída para trás da nuca, que aparecia extasiada quando ela jogou os cabelos e sorriu.

Meu Deus! Quem era essa mulher? Eu a conhecia de algum lugar. E esse perfume? Parece o perfume que escolheram para aquelas mulheres que acompanham o diabo, no meio do inferno, de lingeries e tridentes, com uma sedução absurda. Naquele momento fui estranhamente submetido a dizer alguma coisa, mesmo sabendo que eu, em meu estado normal, jamais diria qualquer sílaba. Só que o que eu disse foi pior do que eu teria pensado.
Tire-me daqui! – eu disse.

Falou comigo senhor?
Oi. Desculpe. Acho que pensei alto. Nem sei o que estou falando. Por favor, me desculpe.
Tudo bem. Também ando distraída pelas ruas, às vezes chego a me assustar quando ouço meu nome.
É mesmo? Então somos dois distraídos.
Em minha mente eu me sentia ridículo. Onde teria achado esse vocabulário idiota. Que vergonha. Espere só um minuto... que estranho... eu...
Moça!!
Me chamou agora senhor?
Você disse que se assusta quando alguém chama seu nome?
Isso mesmo. Por quê?
Porque eu não disse seu nome.
Ela sorriu. Um sorriso tão lindo, tão infame, certeiro, que eu comecei a ficar estranhamente excitado.
Claro que disse. Talvez não se lembre de mim, mas meu nome está gravado na sua cabeça. Como poderia esquecer o nome de alguém como eu?
Desculpe de novo. Acho que estou louco. Nós nos conhecemos?
E não?
É que eu não me lembro.
Não se lembra? Você se lembra sim... Faça um esforço. Olhe no fundo da sua mente. Eu estava lá, quando você entrou pela porta.
Porta? Que porta? De que lugar?

Agora era tarde demais. Eu já estava zonzo, quase inerte e as palavras da moça do vestido vermelho já ecoavam na minha mente como o fundo de um abismo. Minhas mãos ficaram dormentes, meus cabelos eriçados, as pupilas embaçadas demais para ver qualquer coisa, a não serem os olhos dela, pequeninas pupilas negras, que me encaravam de perto, quase imóveis, formando um buraco por onde eu teria que passar. Entrei pelos olhos dela, com os meus fechados, aterrorizado e, aos poucos, fui conseguindo respirar lá dentro. Tive uma imensa vontade de chorar, de medo, mas o que fazer? Eu estava imóvel e tinha pânico de abrir os olhos.

Ulisses! Falou uma voz calma e suave.
É você moça bonita? – falei mais aliviado.
Moça bonita? Você nunca me chamou assim...
Desculpe a falta de respeito. É que estou meio confuso. Quando nos encontrarmos de novo, prometo ser mais educado.
Ulisses! Que papo mais esquisito. Por um acaso você estava sonhando com outra mulher?
Abri meus olhos devagar e vi Cláudia, com seu pijama verde água, sentada ao meu lado da cama.
Ah não. De novo não! – gritei irritado.

Mas eu não estava dormindo. Como posso acordar ao seu lado, sem ao menos saber como dormi aqui. Eu estou cansado disso tudo. É a segunda vez no mesmo dia. Eu preciso sair, ir ao médico. Estou mal Cláudia!
Querido, foi só um sonho, esqueça. Vamos ficar um pouco mais juntos na cama.
Não! Eu não posso ficar sem entender o que está acontecendo comigo. Que dia é hoje Cláudia?
Dia do seu aniversário! Parabéns meu amor! Por isso eu disse para esquecer esses seus sonhos estranhos, pelo menos por hoje. Vamos comemorar?
O que? É meu aniversário hoje? Tem certeza?
Claro Ulisses. Não sou como você, jamais esqueceria o aniversário de alguém que amo.
Não pode ser Claudia. Você não lembra? Estávamos juntos, falando do seu concerto e você saiu irritada.
Isso acontece tantas vezes Ulisses. Todos nós sonhamos com as coisas comuns, da nossa rotina, nossos medos, vontades. Me admira você acordar chamando outra mulher de moça bonita. O que você anda desejando?
Não fale besteiras Cláudia. Eu nem sei direito o que eu estava sonhando. E não estou desejando nada, muito menos sonhando com algo que tenho certeza que aconteceu na vida real.
Ok. Tudo bem. Então, mesmo que aconteceu, vamos esquecer por um minuto. Vamos nos concentrar no seu aniversário.

Que horas são?
Sete horas.
Da manhã?
Isso. Por quê? Você quer dormir mais um pouco. Posso ir para o ensaio sem você.
Não. Não é isso. Estou tentando raciocinar.
Raciocinar sobre horários?
Não Cláudia. Esquece, por favor. Estou irritado.
Não fique. Desculpe. Nem sei mais o que dizer. Você está bravo com tudo, qualquer coisa que eu fale, você ficará irritado.
Não Clau. Desculpe. Não quis ser rude com você. Vamos combinar então e esquecer minhas maluquices por um momento.
Então tá bom. Você vai tomar café comigo no Gomes? Depois vamos ao ensaio, se você quiser.
Hummmm... tudo bem. Mas só vou se antes você me der um presente de aniversário.
Presente? Como assim?
Fique comigo um pouco mais nessa cama. Não sei porque, mas acordei mais romântico hoje.
Jura? Faz tempo que não ouvia isso.
Sei lá, acho que foi seu perfume.
Você que nunca gostou de perfumes...
Feromônios...

7 comentários:

Anônimo disse...

pijama verde-água ou azul?

Anônimo disse...

Mulher de vermelho com o perfume do diabo! Ohh lele.... Alceu iria gostar muito dessa! Beijão amor!

Maíra Colombrini disse...

Olha... acho que é o primeiro homem com "TPM" da história. E a pobre Claúdia aguentando. Ehehehe!

dri dezotti disse...

Isso TEM que virar filme um dia!
eu vi tudo
eu vi o filme!
e � um puta filme!
parab�ns pelo roteiro,
dona Sabrina Sanfelice
beijos e vivas

L. Medjai disse...

fantástico!

... e seus sonhos ficaram marcados sobre a calçada em vermelho.

=)

Beauvoir disse...

Adorei o post. Lembrou-me de meu último ex-namorado: toda vez que nos encontrávamos, ele começava a me cheirar e dizia que eu tinha um aroma que ele nunca tinha sentido em mulher nenhuma, algo hipnotizante...
Terminei com ele. Não agüentava ficar sendo cheirada a todo momento. Com ele, eu me sentia a Lassy.
É a vida...
Beijos

J.F. de Souza disse...

Sou obrigado a concordar com o comentário que puseram aqui...

Isso TEM que virar filme um dia!!!